[Festivais e Mostras] Anora
- Lorenna montenegro
- 8 de nov. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 26 de jan.
Direção: Sean Baker
EUA

Ani (Mikey Madison) é de família russa, que imigrou para NY, nos Estados Unidos, em busca de melhores oportunidades. Ela é dançarina exótica e, numa noite de agitação no inferninho chamado Headquarters, onde trabalha, conhece o irresponsável herdeiro e bon vivant Ivan “Vanya” (Mark Eydelshteyn), que lhe promete mundos e fundos até envolvê-la numa fantasia escapista a lá Cinderella que, longe de ser um romance com final feliz é uma agridoce comédia de erros, protagonizada por underdogs. Sean Baker, o diretor e roteirista desse filme descrito - o ganhador da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, Anora - realiza mais do que um conto de personagens à margem do sonho americano tentando buscar a felicidade e agarrá-la com unhas (postiças) e dentes (esmaltados) se for preciso. Baker realiza um novo clássico do cinema feito nos Estados Unidos, com autoralidade e respeito imenso a tradição das comédias de Hollywood.
Bem diferente daquele que talvez seja seu filme mais maduro ainda (Projeto Flórida), Anora representa uma guinada em direção ao mainstream para um cineasta formado nas trincheiras do cinema independente, que já filmou um longa inteiro utilizando um Iphone como equipamento (o filme que Audiard devia ter visto antes de fazer Emilia Pérez, Tangerine); mas que aqui, apesar o elenco majoritariamente formado por atores iniciantes ou desconhecidos, é uma produção da FilmNation que custou algo em torno de 40 milhões. O que importa é que, como numa boa comédia screwball ou amalucada dos anos 30/40 - e Baker ainda se disse muito inspirado por Um Príncipe Em Nova York e Procura-se Susan Desesperadamente -, a atriz protagonista se destaque e tenha uma sinergia ótima com seu(s) pare(s) romântico(s) e com seu diretor.
Mikaela "Mikey" Madison é Anora de corpo e alma, do fio de cabelo ao salto da sandália plataforma altíssima que a stripper usa. Emulando um sotaque do Brooklyn que parece inspirado na "garota genial" Barbra Streisand - e certamente, suas personagens de mocinhas hora pueris, hora sedutoras, influenciaram Mikey - ela está hilária e comovente, uma prostituta com coração fervilhando para fugir da vida de trabalho árduo e desfrutar de um sonho de princesa. Mas aqui, um detalhe importante precisa ser mencionado: Anora não é um estudo de personagem, uma dramédia sobre a redenção ou salvação de uma “pecadora” ou uma atualização da fábula de Charles Perrault; Baker utiliza a personagem como metáfora do estudo sobre o poder e a corrosão da sociedade ocidental, da Era Trump, das oligarquias abastadas e criminosas e do esfacelamento do sonho americano.
Baker e o fotografo Drew Daniels vão dosando as tonalidades do filme ao clima de cada segmento, no começo mais sexual (e em tons neon de azul e rosa), com os primeiros encontros entre Ani e Vanya, até imprimir mais tons de vermelho, branco junto a tons pasteis de rosa, azul e amarelo, quando das sequências na casa de Vanya ou nas cenas diurnas em que eles se juntam aos amigos do boy oligarca, imprimindo alguma realidade ao conto de fadas, até o desfecho mais acinzentado e azulado, chuvoso, representando a transição emocional da protagonista.
Em verdade Anora tem uma certa irregularidade no ritmo, do casamento em Las Vegas em diante, porém a peteca não cai pois as sequências tragicômicas dos armênios e do russo Igor (Yura Borisov, encarnando com maestria um troglodita sensível) com Anora e Vanya provocam crise de ansiedade e de risos. A coisa fica um pouco caricata demais quando os pais de Vanya entram em cena ou quando Anora briga com uma outra dançarina por causa de Vanya mas é possível compreender o gesto de Baker ali, de retratar os conflitos entre as pessoas que pertencem a diferentes etnias, nacionalidades e que estão em lugares da hierarquia social bem definidos e distintivos entre si. E sendo a fada madrinha dos excluídos da sociedade como ele é, Baker molda o vínculo emocional entre Anora e Igor com singeleza, proporcionando um pouco de compaixão e amor para a heroína, um mundo tão cínico e cinza, onde os oligarcas com poder acham que podem esmagar todos pelo caminho.
Então, fica claro e cristalino que Anora não é uma história de amor; talvez nem seja uma comédia romântica, as comparações que vem sendo feitas desde Cannes com Uma Linda Mulher são bem descabidas, por várias razões mas em específico por Anora não trazer uma objetificação de sua heroina para o bel prazer do olhar masculino. Anora usa o sexo como uma barganha, algo que a pode projetar ou ajudar a alcançar o status que necessita. Como Hepburn em California Story de maneira implícita e Streisand em Essa Pequena É Uma Parada de forma mais frontal. Bogdanovich fez um clássico tardio da comédia amalucada e agora, Sean Baker gerou uma neo comédia amalucada reflexiva, que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes e pode não parar por aí.
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