2023
Direção: Justine Triet
FRA
O ganhador da Palma de Ouro em Cannes, a primeira conquistada por um filme dirigido por uma mulher, Justine Triet - sem compartilhar o prêmio, como havia ocorrido com O Piano de Jane Campion em 1993 -, Anatomia de Uma Queda estreou cercado de expectativas no Brasil, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Menos de duas semanas depois, foi a grande atração do Festival Varilux de Cinema Francês, com a presença do co-roteirista do filme, Arthur Harari, na delegação francesa que veio ao Brasil.
A história de crime e relações humanas, duas paixões da cineasta francesa Triet, se sustenta num tripé interessante: as versões relatadas ou imaginadas de uma trágica queda que resultou em morte, do arquiteto Samuel (Samuel Theis). A única testemunha ocular teria sido a escritora e esposa do morto, Sandra (Sandra Huller), enquanto que o filho cego do casal, Daniel (Milo Machado Graner) tinha se afastado da casa para dar um passeio com o cachorro Messi - uma estrela canina, ganhador do Palm Dog. Logo o menino de apenas 11 anos é envolto no inquérito policial e, sem ter certeza da inocência da mãe, atravessa um dilema, que também angustia, de outra forma, o advogado e amigo de Sandra, Vincent (Swann Arlaud, inegavelmente charmoso) que tentará criar uma estratégia para que o júri saia convencido de que foi um caso de suicídio.
O talento da alemã Huller, aqui atuando em francês, alemão mas especialmente em inglês, é um dos grandes destaques - mais de 50% do filme é falado em inglês (um ponto de convergência segundo a personagem de Sandra), o que rendeu polêmicas e a consequente recusa da Academia Francesa de Cinema em indicá-lo para a disputa do Oscar de Filme Internacional. Tecnicamente, o roteiro é o maior chamariz de Anatomia de uma Queda, com diálogos afiados, como aquele donde resulta o monólogo cortante de Sandra para o marido frustrado que a culpa por seu insucesso. Mas mais do que isso, a anatomia da narrativa é um estudo sobre os alicerces daquele casamento, sobre tudo o que o sustenta e também o acaba soterrando, as fraquezas de Samuel e como a mãe, com a sua forma cerebral e egoísta de conduzir as coisas, magoa o frágil Daniel.
Enquanto o instrumental da música de 50 Cent fica martelando nas cabeças, as peças vão se montando em diferentes direções a partir de distintas percepções de cada um dos personagens envolvidos. O take do presente, quando a gravação de uma discussão entre o morto e a acusada é apresentada pelo promotor (Antoine Reinartz, insuportável e misógino) cristaliza toda aquela realidade conjugal e intima, como se estivesse sendo visualizada através de uma redoma de vidro pelas pessoas que escutam, que estão no tribunal, como Daniel, Vincent, a Juíza e a própria Sandra.
Para além do trato ambíguo da personagem protagônica, Anatomia de uma Queda aparenta ser um filme pouco elaborado mas nisso ele também engana. O talento de Triet e sua equipe estão materializados na dinâmica das cenas, o 'blocking', termo técnico usado para explicitar como atores e objetos estão em quadro e como a câmera se move ou está fixa no quadro. Com uma variedade considerável de combinações, o blocking nesse filme coloca Sandra estática enquanto a camera pega suas reações, registradas pela camera da promotoria que grava seu depoimento durante a reconstituição da queda. Ou o menino Daniel se movendo até o cachorro Messi, passando mal por ter ingerido algo que não devia. Vincent se movendo até Sandra, quando estão conversando na área externa do chalé ou Daniel, parado em frente a tevê, vendo a mãe receber o veredito, e como a reação dele é capturada no frame. Assim, a cineasta transmite aos espectadores o que intenciona com cada gesto da camera, a constituição e o desenvolvimento de sua história a partir dos sujeitos em cena na encenação fílmica.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
Comments