2023
Brasil
Direção: Flora Dias e Juruna Mallon
Produção: Leonardo Mecchi
Selecionado para a prestigiosa Mostra Fórum do 73º Festival de Cinema de Berlim, dedicada a filmes radicais na experimentação, O Estranho vem sedimentar um caminho frondoso trilhado por cineastas brasileiros no circuito dos festivais internacionais. Concentrando a narrativa no Rio Baquirivú, que corta o município de Guarulhos de Nazaré Paulista até o Tietê, Flora Dias e Juruna Mallon passeiam pelo passado-presente-futuro de Guarulhos enquanto território ancestral, aeroporto e lugar cheio de narrativas, com seus 47 bairros e 800 territórios. A ficção é o documento, a mola propulsora da narrativa centrífuga de O Estranho, com Larissa Siqueira (Alê) e Patrícia Saravy (Silvia) vivendo as amantes cujas encarnações habitam Guarulhos em distintas passagens temporais. Rômulo Braga também empresta sua versatilidade como um dos líderes dos funcionários do aeroporto, que trabalha lado a lado com Antonia Franco e Laysa Costa, além de Jorge Neto como um colega de Larissa que se acidenta durante o trabalho.
A errância das personagens de Alê e Silvia alarga as bordas da significação visual, fazendo com que a fruição filmica, por meio de um sentimento de desterro e da mudança no regime narrativo alicerçada na montagem de João Marcos de Almeida se locuplete com a fotografia de Camila Freitas, o design sonoro de Leonardo Bortolin e a direção, num amalgamento de unidade dramática, ainda que fragmentada, sobre as dificuldades de habitar um lugar e pertencer ou de se manter parte de algo que já se foi, partiu. O fraccionamento e friccionamento de O Estranho num documentário se dá no segmento com os residentes da aldeia multiétnica Filhos da Terra, mas sem desfazer o elo formado no roteiro intrínseco, de trajeto, que trata da fundação do aeroporto de Cumbica (o Estranho do título?) e também do que ali ocorria em 1492, quando a folha e flor abrigavam um veio de quartzo, pedra de onde o ouro estava associado - a voz em off é do geólogo Edson Barros, personagem e consultor do filme. Do asfalto de uma das pistas do aeroporto, irrompe a imagem narrada: a terra de tempos imemoriais rompe o chão e gera uma grande fissura. Uma mulher - antepassada de Alê - cata pedras e outros mineirais na beira de um rio. Das margens desse mesmo rio (Baquirivú), próximo a uma caverna, filhos e filhas de Oxum, entre os quais Silvia, se banham e fazem oferendas. Nas proximidades, no solo se misturam, numa imagem esmaecida, pedras ossos, areia, minerais e outros detritos.
"Como se acostumar a dormir sem o barulho dos aviões?" inquire Silvia, ao tentar não se despedir para sempre de Alê, que escolheu ficar em Guarulhos. E por essa escolha, o rio falou com ela, disse que desde o princípio do mundo, todas as águas sabem do destino de cada um. Reflexivo, existencial, sensorial, O Estranho é muitas coisas e não busca na exatidão do cinema feito num modelo fabril, de narrativa convencional, ser absorvido por um público de cinema. Exige calma, com sua artesania imagética aparentando ser delicada, além de atenção. E também de fé. É uma experiência alentadora para os sentidos e para quem busca outros cinemas que tem um apelo político e de desafio à linguagem.
O Estranho é produzido por Leo Mecchi, que tem em seu currículo outros filmes que instigam e atraem por um olhar nada convencional sobre as realidades de populações ribeirinhas, indígenas, o confronto com o capitalismo e a modernidade, como A Febre (de Maya Da-Rin) e Los Silencios (de Beatriz Seigner). Após o primeiro longa juntos, O Sol Nos Meus Olhos, realizado em 2013, a dupla de cineastas envereda por um caminho mais fragmentado e onde o cinema de fluxo demarca as intencionalidades por detrás do discurso do filme, permeado pela antropologia, arqueologia e sociologia. O gesto em direção aos filmes que representam essa vertente do cinema, prolífica no trópico sul, não é impensado: Flora Dias inclusive participou de um workshop na Amazônia Peruana com Apichatpong Weerasethakul e espera que ele veja O Estranho um dia.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
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