2023
JPN/ALE
Direção: Wim Wenders
"É um dia tão perfeito, que bom passar o dia com você É um dia tão perfeito, você apenas. me mantém aguentando
Os problemas ficam para trás
E você me faz esquecer de mim mesmo"
O mundo é feito de muitas palavras. Algumas delas estão conectadas, outras não estão. Para o Sr. Hirayama, falar é um ato que não deve ser exercido com indolência. Ele permanece o dia todo quase que em perfeito silêncio, fazendo suas atividades rotineiras como acordar, guardar sua cama, escovar os dentes, se vestir, tomar café, se vestir, pegar seu material de trabalho, colocar no carro, retirar do carro e começar a limpar os banheiros públicos de Tóquio. Após o fim do expediente, ele guarda o material, guarda o carro, pega a sua bicicleta e vai passear pela cidade e ir jantar num restaurante tradicional e bem simples. Todos os dias são iguais? Não exatamente. Mas para ele, a perfeição da rotina é encantadora e é sinônimo de felicidade.
Perfect Days é então um estudo de personagem feito por um dos maiores cineastas vivos, que já realizou obras primas como Alice nas Cidades, No Decurso do Tempo e Tokyo-Ga. Em entrevista para o IndieWire, Wim Wenders comentou que não foi coincidência ter dado o nome ao seu protagonista de Sr. Hirayama, o mesmo do personagem principal de A Rotina Tem o Seu Encanto, último filme do mestre Yasujiro Ozu - que é o seu cineasta do coração. Guarde essa informação.
Roteiro escrito em colaboração direta com Takuma Takasaki, Perfect Days foi filmado apenas em 18 dias na capital japonesa, com Wenders tendo uma equipe bastante misturada entre profissionais locais e germânicos. Perfect Days é inclusive uma co-produção entre Japão e Alemanha e o filme indicado para concorrer a um indicação ao Oscar, deixando os novos filmes de Kore-eda e Hamaguchi para trás.
Vencedor do prêmio de melhor ator e o prêmio de júri ecumênico, o filme japonês de Wim Wenders não deixa de ser uma imersão estrangeira na cultura local, a partir de um elemento inusitado: os banheiros públicos criados a partir da iniciativa intitulada The Tokyo Toilet, onde 17 banheiros foram reimaginados por designers japoneses e de outras nacionalidades a partir de um conceito de inovação, imaginação e integração com o meio urbano. No próprio site da iniciativa, está assinalado que os banheiros são o maior símbolo da cultura de hospitalidade do Japão - quem nunca sonhou em ter uma privada daquelas inteligentes e confortáveis que vemos nos filmes e séries que se passam no país do sol nascente ou que são exportadas? O conterrâneo e colega do Novo Cinema Alemão, Werner Herzog, já tinha feito algo semelhante a Wenders ao produzir no Japão um filme sobre a prática do 'aluguel de familiares e cônjuges' em Family Romance.
Nada menos do que sublime, a atuação de Kôji Yakusho (de Babel e Memórias de Uma Gueixa) é a conexão humana, o vínculo irrompível com a história de Perfect Days. O homem que mecanicamente repete os seus dias, sempre com um sorriso no rosto ao ouvir suas músicas preferidas no toca-fitas, é a expressão máxima da resiliência e também da melancolia. No caminho do Sr. Hirayama, passam o colega de trabalho falastrão Takashi, a namorada indiferente deste, Niko e a filha de sua irmã, a sobrinha Sayuri além da simpática dona de um estabelecimento que vende lámen.
Entre amanheceres e entardeceres, tocam House of the rising Sun (The Animals), Redondo Beach (Patti Smith), (Sittin' On) The Dock of The Bay (Otis Redding), Feeling Good (Nina Simone) e claro, Perfect Day (Lou Reed), o heroi silencioso vai levando sua vida apreciando em especial as folhas das árvores sob o efeito da luz - o que os japoneses chamam de Komorebi -, registrando em fotografias que revela, descarta ou guarda numa caixinha. Em um dia qualquer, dá carona a Takashi e Niko, no que a menina surrupia a fita de Horses; outro dia leva a sobrinha para se sentar no banco de um parque, onde tira fotografias das folhas. Juntos escutam Sunny Afternoon (The Kinks), antes dele ter que se despedir da menina e receber um abraço de carinho incontido da irmã.
O Sr. Hirayama sonha em preto e branco, após ler William Faulkner ou Patricia Highsmith antes de dormir. Ao despertar, ele refaz todo o ritual, limpando com muito esmero e dedicação cada um dos banheiros públicos. Para espanto até daqueles que convivem com ele diariamente, Hirayama não perde a capacidade de se encantar com o mundo. Ele não aparenta estar entediado ou irritado. Um querido amigo, que esteve na sessão do filme comigo, falou que a felicidade para os budistas se trata de "um estado de espírito elevado que se alcança ao se atingir a plenitude". Parece que Perfect Days é sobre isso. E não deixa de transparecer uma elipse na própria filmografia de Wenders, cujos filmes mais emblemáticos da primeira fase são sobre pessoas em trânsitos, se movimentando em busca de momentos felizes. "Da próxima vez é da próxima vez. Agora é agora", ensina o Sr. Hirayama ao Takashi, de uma forma bem tranquila e sábia. O próprio cinema de Ozu, a quem Wenders tão bem referencia nesse filme e que já tinha sido o objeto e sujeito do seu filme de 1985, quando entrevistou atores e técnicos que trabalharam com Ozu e que simbolizou a sua primeira incursão cinematográfica no Japão, é sobre transcendência, a aceitação da inevitabilidade e das incertezas da vida.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
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