2023
EUA
Direção: Yorgos Lanthimos
Eis que o novo filme do sardônico e inventivo cineasta grego Yorgos Lanthimos (de A Lagosta e A Favorita) é tudo aquilo que as expectativas elevadas alimentadas pelas imagens de divulgação estavam assinalando: um trabalho superlativo, uma magnífica fábula franksteiniana e talvez seu trabalho que irá comunicar melhor com uma ampla audiência já que é impossível sair impassível de uma sessão de Poor Things.
Na história, adaptação do inventivo romance de Alasdair Gray, temos Bella Baxter (Emma Stone), a criatura de Godwin Baxter (Willem Dafoe), aprendendo a caminhar, a falar, a comer, a copular e a se relacionar. A mulher revivida é uma versão feminina do Frankenstein de Mary Shelley?
Sim. A personagem central de Poor Things é uma criação formidável da mente do roteirista Tony McNamara (criador da hilária série The Great) e do diretor Yorgos Lanthimos - e de Miss Stone. Esse trio arranca risadas e lágrimas na mesma intensidade, com uma história sobre emancipação, amor e liberdade (e libertinagem! E porque não?)
Numa atmosfera steampunk, de um futuro idealizado, ao passo em que parece localizado em algum lugar suspenso no espaço-tempo durante a revolução industrial, o futurismo retrô sendo expresso nas máquinas a vapor (daí o 'steam'), Lanthimos usa de um requinte visual extremo para representar a saga de Bella Baxter, desbravando Lisboa, num cruzeiro até a Grécia até um bordel em Paris e depois de volta para uma Londres vitoriana, imunda e coberta pela neblina.
Dos figurinos super modernos, com cores fortes e cortes inusitados de inspiração inédita a partir de materiais como o látex, que Holly Waddington criou a partir da orientação do cineasta, que não queria que as roupas parecessem de época ou saídas de um universo sci-fi, até a trilha transcendental de Jersin Fendrix, até os trabalhos de decoração de set, design de produção, maquiagem (como a maquiagem prostética genial de God), da arte gráfica dos intertítulos capitulados do filme. Tudo, tudo é magnífico para os olhos e a mente.
Bella e seu pequenino cérebro vai evoluindo a partir da dedicação de God e de seu aluno e discípulo, Max MacCandles (Ramy Youssef) que treina e se apaixona por Bella. Porém, ela vê no advogado fanfarrão e metido a galã Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo, absolutamente impagável) a oportunidade de viver uma grande aventura e desbravar o mundo para além dos muros e grades da mansão Baxter, para depois retornar, se casar com Max e ficar ao lado do pai adotivo. Para surpresa geral, nenhum dos homens de Bella se opõem à sua vontade e a heroína em formação parte em sua jornada de autoconhecimento.
A fábula de Bella Baxter começa na criação da criatura e é, como numa acertado aceno à origem vitoriana do primeiro romance de terror da história ocidental, a sequência de estética gótica do filme. Poor Things deixa de ser em preto e branco e passa a um fulgurante colorido, surreal e inquietante - que remete aos primórdios do cinema quando coloristas como Elisabeth Thuillier imprimiam uma camada a mais de magia ao pintar à mão filmes de Georges Méliès - quando a heroína descobre, na cama com Duncan, um saboroso e multiplicado orgasmo. Com ele ela também faz descobertas menos doces, como o ciúme, o machismo, o sentimento de posse, o rancor e a rejeição. E graças a viagem, Bella também se depara com a dor, a miséria, o desalento, a amizade, a bondade e a bissexualidade (!)
"Nós somos os nossos próprios meios de produção", assinala Bella para um Duncan inconsolável em ser descartado por uma mulher, como ele próprio havia feito com tantas mulheres antes. Se prostituindo e tendo várias pequenas mortes - os orgasmos - ela vai ficando cada vez mais sabida e conhecedora do seu corpo, intensificando suas experiências sentimentais à medida em que vai desbravando o mundo. Repleto de comicidade em todas as suas sequências, Poor Things também equilibra com primor o drama de viver num mundo tão caótico e febril, como na cena em que a cantora Carminho canta um fado que pega Bela de jeito, a fazendo acessar sensações e sentimentos que até então desconhecia, como a saudade e o sentimento de solidão.
Texto basilar do feminismo pós moderno, o manifesto ciborgue de Donna Haraway desafia as noções da tradição feminista arraigadas à identidade como sujeito político - invés disso, encoraja uma colisão por meio das afinidades e uma rejeição da rigidez dos limites, notabilizada pela separação de humano de animal e de humano de máquina. Numa fricção teórica do manifesto com Poor Things, é notório como o filme se utiliza dessa noção de humanidade frívola, nunca disposta a infringir as regras e viver hedonisticamente, sem culpa - coisa que Bella faz, a exemplo, de uma certa maneira, do que God também faz em sua casa/laboratório, não tendo preceitos éticos ou morais que o impedem de criar um 'porcolinha' (cabeça de porco e corpo de galinha) ou de resgatar o corpo praticamente intacto de jovens mulheres suicidas que se afogam no rio Tâmisa.
A monstruosa sexualidade e libido femininas, tema de tantas discussões e controvérsias como as primeiras formulações freudianas sobre a histeria que relacionam o distúrbio como uma expressão corporal anormal ou inconsciente de conflitos psíquicos e de um sofrimento emocional intenso, um estado experimentado pelas mulheres. E Breuer, médico e colega de pesquisas do psicologo austríaco acrescentava, em 1886: "é como se o corpo feminino fosse um vulcão que deixasse a lava escorrer continuamente, à espera de uma erupção que parece que nunca vai se concretizar".
A sedução, o feminino e a histeria sendo sinônimos para Freud, um homem culto e estudioso da psique, era então para a maior parte dos mortais um perigo real, que precisava ser domado - eis que então, a brilhante ideia de extirpar o clitóris tenha soado para Bella como um atentado a sua própria vida. E por falar em monstro, em meio à atuações realmente sensacionais de todo o elenco - Emma Stone já está seguramente indicada -, o trabalho de Dafoe se destaca de uma maneira tão de verdadeira alquimia que vai ser difícil se conformar se ele não for indicados as premiações na categoria de ator coadjuvante, incluindo aí a sua quinta indicação (possível primeira vitória? oremos) no Oscar.
Como uma ciborgue, Bella não sonha em pertencer a uma sociedade seguindo o modelo de família orgânica e burguesa seguindo o modelo oedipal. Ela não reconhece que foi feita do barro por um Deus cristão e que ao pó regressará. Como uma filha da ciência e ardorosa aprendiz dos mistérios da medicina, Bella é uma versão aperfeiçoada de seu criador ao mesmo tempo em que - e ele sabe bem disso - é uma pessoa com sua individualidade e talento único, que herda o nome e o legado Baxter. E forma a sua própria família com direito a um marido, uma amante, um cabrito de estimação e um jardim botânico onde o sonho da existência se materializa numa entropia que é Poor Things, o filme.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
Comentarios