2023
Estados Unidos
Direção: Sofia Coppola
O principal bibelô do rei do rock na casa de bonecas mais conhecida como Graceland, Priscilla Presley teve a adolescência e parte da vida adulta sequestrada pelos holofotes da fama e do sucesso fugaz. Baseado no livro de memórias da própria, a roteirista e diretora Sofia Coppola coloca novamente Elvis como um personagem em um filme - após a incursão de Baz Luhrmann com a cinebiografia do cantor - mas dessa vez, ele é menos a vítima de um ardiloso empresário e das armadilhas da celebridade e mais um homem charmoso e perturbador que manipula a mãe de sua única filha, Lisa Marie Presley. Ironia ou não do destino, a filha casaria com um 'pobre, doce e incompreendido homem' em 1994, que atendia pelo nome de Michael Jackson. Será que a mesma frase poderia ter sido utilizada por Priscilla em relação à Elvis? A apaixonada e tortuosa relação dos dois dá a tônica do filme de Coppola, que ainda se utiliza do estilo coming of age para retratar o crescimento e a emancipação da mulher do rei do rock.
A novata Caileen Spaney arrematou a Copa Volpi de Melhor Atriz no Festival de Veneza com sua interpretação como Priscilla. O que ela faz, especialmente durante os silêncios da personagem, a hesitação, a doçura e a perda da inocência no olhar, caracterizam uma atuação difícil e bem nuançada. A princípio, Priscilla Beaulieu é uma adolescente que vive com os país numa base militar norte-americana na cidade de Hamburgo, no pós guerra. Elvis Presley serviu o exército e na ocasião, conheceu Priscilla em uma festa na sua casa. Coppola vai, linearmente, focando nessa história de amor adolescente e idealizado. Elvis é não só um rapaz cobiçado como compromissado com a família de Priscilla. Seguindo todos os protocolos sociais e as convenções, ele aos poucos convence os pais dela a entregarem a filha nos braços dele (e eles não fazem ideia de como o "bom moço" na verdade é um Zé droguinha, viciado em barbitúricos).
A paixão de Priscilla por Elvis e a inquietação que ela sente em ter que terminar o ensino médio para poder vislumbrar alguma liberdade, que seria ir para os Estados Unidos e viver na casa de Elvis é acentuada pela montagem de Sarah Flack que, em consonância rítmica com a trilha de Thomas Mars e Phoenix, capitula os sentimentos de Priscilla até a concretização do sonho: o casamento com seu amor idealizado. Sofia Coppola entrega um filme frio, rígido até no trato com os personagens mas bastante eficaz na mensagem que quer passar, de que mesmo o romance de conto de fadas mais admirado é um castelo de cartas prestes a desmoronar. A fotografia gélida de Philippe Le Sourd (que colaborou com ela em O Estranho Que Nós Amamos) colabora e muito nessa escolha estética.
A subjetividade da personagem de Priscilla conduz a narrativa do filme, da maneira que Lucy Bolton observou em outros exemplares da obra de Sofia Coppola, como As Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros, em seu livro Film and Female Consciousness, com a cineasta identificando as luzes e as sombras na cultura da feminilidade e as politicas do prazer visual em narrativas sobre jovens mulheres, brancas e de classe média. Nenhuma música de Elvis toca ao longo do filme mas outras canções dos anos 50/60 deixam transparecer os sentimentos de Priscilla, como Lolita Go Home (Jane Birkin) e After Hours (Velvet Underground) ou mesmo Age of Consent (New Order), num mix anacrônico e característico de Coppola, já visto em obras como Maria Antoinette.
Nunca estive em Graceland mas posso afirmar que o trabalho da designer de produção Tamara Deverell, o figurino de Stacey Battat, e todo o trabalho da maquiadora Amber Chase e de sua equipe no departamento de maquiagem e cabelo é impecável. As mudanças em Priscilla, da adolescente tímida e que usava rabo de cavalo até a esposa "bebê" com o cabelo 'bolo de noiva' tingido de preto, os cilios postiços e os vestidos coquete bem cortados, típicos dos anos 60, são estonteantes. Os figurinos e o penteado de Elvis também estão impecáveis, realçados pela beleza e o talento de Jacob Elordi.
Elordi cria uma persona para o seu Elvis que é tão instigante quanto o trabalho de Austin Butler no filme do ano passado. O objeto do desejo de Priscilla é presunçoso, imaturo, manipulador e violento. Em várias sequências, Coppola ilustra em situações mais sutis e outras nem tanto como, desde o primeiro momento em que cruzou olhares com Elvis, Priscilla abdicou de tomar conta da própria vida. Desde o vício em barbitúricos, que Elvis a faz partilhar, passando pelo fato dele tratá-la como um adereço doméstico e refrear suas necessidades físicas e emocionais, vão minando a alegria de Priscilla. Ele a ameaça repetidas vezes com palavras e gestos, acentuando que Priscilla precisa estar sempre disponível para ele e aceitar todos os deslizes dele, incluindo a sucessão de namoradas on e off camera que ele manteve durante seus anos em produções Hollywoodianas. A decisão de ter uma vida própria leva Priscilla a partir e se apartar no prenúncio da tragédia que se abateu sobre essa figura tão controversa e adoentada.
Segundo a própria Sofia Coppola, em entrevista para o jornal Financial Times, o espólio de Elvis não ficou nada satisfeito com o seu filme. "Lembro-me do empresário de Priscilla dizendo que os fãs de Elvis não iriam gostar de certas coisas. Mas eu não estou fazendo esse filme para eles", arrematou. O fato é que a última cena, com Priscilla dirigindo seu carro enquanto toca no som do rádio e inunda a trilha sonora a música diegética I Will Always Love You - na versão original, na voz sofrida de Dolly Parton - é tão simbólica que ao subirem os créditos os aplausos emocionados irromperam na sala de cinema. A experiência partilhada, a força imagética da narrativa sobre uma mulher que decide, pela primeira vez, se priorizar, fortalece a obra da cineasta nepobaby.
Avaliação: ❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
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