Direção: Marianna Brennand
No microcosmos da Ilha do Marajó, vivem Tielle, um irmão mais velho, uma irmã mais nova, além da mãe, grávida de mais um e o pai. Com 12 para 13 anos, a menina vive sua infância entre banhos de rio, escola, peconha (colheita) do açaí e a rotina doméstica. Sua vida é abalada a partir do momento em que passa a ser vítima de abuso sexual dentro de casa, talvez a razão pela qual a irmã mais velha resolveu fugir e ir embora. O Marajó, maior arquipélago flúvio-marítimo do mundo, aparece costumeiramente no noticiário nacional por conta da exploração sexual de meninas e mulheres. Influenciadores e famosos se "engajam" em campanhas de enfrentamento, que muitas vezes trazem informações distorcidas, exageradas ou mesmo falsas e estigmatizam ainda mais a região, considerada parte do 'Brasil Profundo'.
Fato é que existem pessoas e instituições que atuam a muito tempo no Marajó e em seus 16 municípios com mais de 500 mil habitantes. As mazelas humanas, sociais e econômicas são muitas, sim, com algumas dessas localidades tendo os piores IDH-M do país mas não é como se, nas regiões Sul e Sudeste por exemplo, não houvessem municípios em situação pior ou igual. E pelas dimensões continentais do Marajó, por se tratar de uma região ribeirinha, o controle dos crimes de exploração sexual é difícil de ser feito. Mas existem iniciativas como o Observatório do Marajó, O Marajó Vivo, o Fórum da Sociedade Civil do Marajó, o Disque 100 e o programa federal Cidadania Marajó - que visa desarticular redes de exploração, abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes na ilha. Ainda que figuras como a Irmã Henrique Ferreira Cavalcante, o bispo emérito do Marajó Dom Luiz Azcona e o delegado Rodrigo Amorim lutem para transformar a realidade dos menores, em palafitas localizadas em furos de rios, nas embarcações, nos portos e nos prostíbulos flutuantes, o abuso é prática recorrente e sua ocorrência muitas vezes, fica omitida.
Se tratando de um tema tão movediço e árduo de ser abordado, a cineasta Marianna Brennand, que passou mais de uma década no arquipélago, pesquisando casos de abuso e exploração sexual desde a primeira ida ao Marajó, quando ouviu relatos e a princípio pensou em fazer um documentário mas, guiada pela Irmã Henriqueta, teve acesso a muitas fontes, fez uma pesquisa robusta e optou por fazer uma ficção pois "infelizmente é uma história universal, que trata das violências que mulheres e crianças sofrem, dos homens que acreditam que tem direito aos nossos corpos".
Fugindo dos estigmas e dos lugares comuns ao retratar uma localidade onde a vulnerabilidade social é grande, Brennand centra em Manas seu olhar na experiência da menina Tielli naquele mundo repleto do esplendor da natureza, da dureza de uma vida simples e da maldade dos homens. E é a estreante Jamilli Correa quem empresta magnetismo, verdade e delicadeza, numa atuação verdadeiramente comovente. Sua Tielli amadurece no ecrã, durante o processo de projeção do filme, passando de menina que se inspirava na irmã, Claudinha, que 'foi pra cidade', que tinha suas amigas na escola, que gostava de viver junto do pai, até o dia em que ele a leva pela primeira vez numa caçada e tudo se modifica. O olhar da atriz, a maneira com que a diretora, junto ao fotográfo Pierre de Kerchove, decupa e organiza a narrativa do filme a partir de closes e primeiros planos que registram as expressões de Tielli, carregadas de significados.
O trabalhado da montadora Isabela Monteiro de Castro também imprime o tom da experiência de imersão no universo simbólico e concreto da menina, que após o primeiro estupro paterno, resolve se aventurar com Carol, a amiga 'balseira' e conhece homens que estão ali, prontos para explorá-las em troca de uns trocados. Importante destacar que o casting, para além de revelação impressionante que é Jamilli, uma 'mini-Dira' já que a superlativa atriz paraense foi revelada ainda muito jovem, em A Floresta das Esmeraldas de John Boorman em 1985, tem a própria Dira num papel coadjuvante mas de extrema importância para a trama, além dos ótimos Rômulo Braga e Fátima Macedo como os pais ribeirinhos.
Manas, para quem pertence àquela realidade, para quem trava contato com aquela realidade, seja na Ilha do Marajó ou em outro lugar ou contexto, e para quem não conhece mas é apresentado a esta por meio deste filme enquanto veículo de disseminação, tornando-se um produto cheio de potência artística e profundidade de conteúdo que não à toa, foi reconhecido na Jornadas dos Autores na última edição do Festival de Cinema de Veneza. Talvez o desfecho seja encarado como irreal mas é na fábula, na menina que pega o barco e vai na direção do seu destino que Brennand enxerga uma possibilidade de romper com o ciclo de violência. Porque é muito fácil tomar o caminho da exotização ou mesmo do suposto engajamento na causa do combate a exploração sexual infantil, sem chegar pisando com cuidado e pedindo licença aos encantados e a povo do Marajó. O resultado que imprime dá conta de quando o filme é feito com respeito.
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