2023
EUA
Direção: Todd Haynes
Como um "Caso de Família" ou uma matéria jornalística investigativa bem sensacionalista, a história controversa de amor entre Joe e Gracie ganhou os holofotes, os tabloides e a imaginação fervorosa de uma atriz, Elizabeth Berry, que irá interpretar Gracie em um telefilme sobre o escândalo real da mulher adulta que engravidou de um adolescente e foi presa por abuso de vulnerável. Enredo de novela, né não? Ou de série de True Crime. Mas nas mãos de Todd Haynes, se tornou um melodrama cheio de camadas e de gente neurodivergente: eis May December (ou na tradução sofrível, Segredos de Um Escândalo).
O cineasta norte-americano, apaixonado pelos melodramas de Douglas Sirk, trata da dificuldade das relações humanas permeadas pelos códigos da moral e dos bons costumes, como em clássicos de Sirk - Imitação da Vida, Tudo Que O Céu Permite - mas vai além expressando uma epítome do melodrama ao penetrar na natureza da performance da atuação nesse novo filme. Sua atriz-assinatura, Juliane Moore, representa um dos elos dramáticos de May December, o outro sendo Natalie Portman e a maneira com a qual a segunda atriz, vai mimetizando os gestos e o comportamento daquela que Moore interpreta. E o que é mais chocante, como as atuações dessas duas titãs de Hollywood são completamente ofuscadas pelo brilho de Charles Melton, que vive a vítima da história, Joe Yoo.
Mas antes de adentrar no drama cinematográfico em questão, vale pontuar que Samy Burch, ao roteirizar o argumento que escreveu com Alex Mechanik, se debruçou sobre o escândalo real envolvendo a professora Mary Kay Letourneau e um dos seus alunos de 12 anos, Vini Fualaau, de quem ela abusou e engravidou. A roteirista contou, em entrevista à People magazine, que ter contato com esse caso policial a fez tentar entender porque que a sociedade e a mídia vivem de recriar histórias assim. E então May December começa 20 anos depois do caso fatídico que uniu Gracie Atherton (Julianne Moore) a Joe (Charles Melton), com quem teve os gêmeos Charlie e Mary. Eles são aparentemente uma família de comercial de margarina, se por detrás das aparências, Elizabeth (Natalie Portman) não fosse espiar para ter "material de pesquisa" para compor a sua personagem. A partir do momento em que a atriz e nós, publico, entramos na vida daquelas pessoas, o castelo de cartas começa a desmoronar e revelar perfídia.
Haynes, o rei das grandes emoções e conflitos infinitos que ficam escondidos em belas superfícies como em Carol, Longe do Paraíso e Safe, aqui se aproxima mais de outro cineasta que tem o melodrama como um elemento constituinte da sua estética e que também foi fã de Sirk: Fassbinder - e que fez inclusive a sátira melodramática com muita elegância, como Medo do Medo e O Assado de Satã. Nessa aproximação por transparência, o cineasta norte-americano carrega nas tintas da composição fílmica ao colocar May December sob um filtro das produções dos anos 90, com uma fotografia muito clara e até mesmo um pouco translúcida (assinada por Christopher Blauvelt) e uma trilha sonora bastante atonal de Marcelo Zarvos, que na verdade faz uma releitura e adaptação da música de Michel Legrand para o filme O Mensageiro, no original, The Go Between. O maestro, arranjador e compositor francês é autor de algumas das trilhas mais melosas e belas do cinema, como a de Houve Uma Vez Um Verão - que também é a história da paixão de um adolescente por uma mulher mais velha.
Na cena que ilustra o poster de divulgação do filme, Gracie está se maquiando em frente ao espelho e Elizabeth pede que ela a ensine como gosta de se maquiar. Ela então começa a maquiar a atriz e solta, em tom de ameaça: "pessoas inseguras são muito perigosas." O jogo de sedução e de perseguição entre elas tem Joe como um pêndulo, um objeto em meio aquelas duas pessoas sem moral. Ressaltando a artificialidade do melodrama, May December tem atuações over the top, quase caricatas, de duas ganhadoras do Oscar, para acertadamente ressaltar como ambas são personagens que disfarçam suas intenções através das mascaras sociais que usam. Enquanto que Joe é o homem-menino, que não amadureceu e nem compreendeu o que aconteceu com ele nas duas últimas décadas. Ele tem uma criação de larvas, que cuida com carinho até que elas estejam em condições de romper seus casulos e virarem borboletas. A metáfora aqui, apesar de óbvia, é bem adequada para Joe, que precisa crescer para se libertar e ganhar asas. E a libertação dele vem através do sexo.
O sexo é, na trama de May December, o que desencadeia todo um trauma na mulher mais velha que se torna uma predadora sexual, apaixonada pela prática da caça que aprendeu com o pai. Ela mantém a farsa e encena o teatro de esposa perfeita do subúrbio, que faz bolos para a vizinhança. A cena em que Joe, atormentado, espera ela acordar para perguntar como foi que eles acabaram juntos, pois ele sente que teve uma parte da sua vida sequestrada, é realmente dilacerante. Melton entrega uma atuação visceral, sensível e comovente. O polo oposto ao desespero que sacode o personagem das suas certezas é quando ele fuma maconha no telhado com o filho ou ouve o nome de ambos os filhos sendo chamados na formatura do ensino médio - coisa que ele não pode vivenciar.
Narrativamente, Haynes e sua roteirista optam por conduzir esse melodrama numa forma investigativa, onde a obsessão de Elizabeth a fará reproduzir o comportamente predatório do seu objeto de estudo. De forma patética, o filme tem em seu desfecho uma perturbadora repetição da dramatização da cena em que Gracie seduz Joe nos fundos do petshop onde eles trabalharam juntos. No presente, Joe já não tem mais certeza de que se apaixonou por Gracie e decidiu ficar com ela por vontade própria. Uma carta que ela lhe enviou da prisão, e que pediu que ele destruísse após ler é a prova do abuso, da maldade e da imoralidade praticada. Não, eles não tinham 'algo raro'. Ele era uma criança e ela, uma mulher cheia de traumas. Nessa espiral de traumatizações e dramatizações, Todd Haynes comprova que é o principal discípulo de Sirk e Fassbinder, para alegria do público que ama um bom (e polêmico) dramalhão.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.
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