Direção: Mohammad Rasoulof

O cinema iraniano é uma força que nunca deve ser ignorada nos festivais e nas premiações de cinema. Mas, o que ocorreu em Cannes 2024, na opinião de uma parte considerável do público, da crítica e dos jornalistas, quando o júri presidido por Greta Gerwig optou por conceder ao filme do exilado Mohammad Rasoulof, o prêmio especial do júri - e A Semente do Figo Sagrado ainda saiu com o prêmio da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) mas a cobiçada palma de ouro não foi para o Irã, foi para os EUA de Anora. Na temporada em direção ao Oscar 2025, o filme de Rasoulof, como a indicação da Alemanha para filme internacional, conseguiu estar entre os cinco indicados finais o que é ótimo já que é um dos cinco melhores filmes da safra 2024 e merece o buzz da indicação que o fará ao menos ser visto nos cinemas ao redor do mundo.
Rasoulof, talvez o cineasta mais perseguido e odiado pelo regime teocrata dos Aiatolás, realiza em A Semente do Figo Sagrado um levante sobre o direito das mulheres iranianas a estudar, trabalhar e conviver com seus familiares homens tendo seus direitos humanos respeitados. E para tanto, radiografa a vida familiar de um juiz de instrução, Iman (Missagh Zareh, indo da ternura ao desespero em questão de segundos), sua esposa, a impecável Najmeh (Soheila Golestani) e as filhas, uma entrando e outra saindo da adolescência - Rezvan (Mahsa Rostami) e Sana (Setareh Maleki).
A forma como a ação escalona de maneira inicialmente demorada e pontual, até se tornar frenética, é mérito de Rasoulof (também autor do roteiro) e de sua equipe, incorporando à dramaturgia do filme cenas de protestos e manifestações que estão pelas redes sociais e mostram ao mundo como Teerã tem fervilhado perante a insatisfação com o governo misógino. A fagulha para uma crescente de insatisfação é a morte da estudante Mahsa Amini, de 22 anos, por não usar o véu. Acabou detida pela "polícia da moralidade" e foi hospitalizada com sinais de agressão, não resistindo aos ferimentos.
O mundo real espelha na ficção o choque geracional e a convulsão social que provocam o desgaste na relação de Iman com as filhas, cansadas de lidar com tanta opressão. "O mundo mudou, os jovens estão diferentes", ele confessa para o colega de trabalho no tribunal, durante uma pausa para comer e fumar um cigarro. Os corredores do lugar estão cheios de homens e especialmente mulheres, vendadas e sendo encaminhadas para interrogatórios ou julgamentos, por terem provavelmente descumprido "A Lei de Deus". Sentenciado com a pena de morte e radicado na Alemanha desde maio de 2024, Rasoulof deve ter conhecido de perto um tribunal como aquele que retrata. Não tão diferente de Eunice Paiva, a heroina retratada em Ainda Estou Aqui, o cineasta leva para a ficção uma realidade que parece ser imutável e irrevogável mas que ainda assim, quer denunciar na forma da arte cinematográfica.
Num diálogo com os filmes de Asghar Farhadi e Holy Spider de Ali Abbasi, Mohammad Rasoulof cruza em A Semente do Fruto Sagrado drama com thriller político e filme de tribunal mas dessa vez, o tribunal é muito mais figurativo e um inquérito toma conta da rotina domiciliar de Iman, Najmeh, Rezvan e Sana quando ele nota o sumiço da arma que carrega e que lhe foi cedida pelo judiciário; logo o juiz desconfia das filhas e da própria esposa, colocando sob suspeita o comportamento delas. Pra piorar a situação, a mais velha, Rezvan, tem uma amiga que foi baleada e depois detida na manifestação na faculdade onde elas estudam, que desapareceu sem deixar vestígios do alojamento estudantil. Ela implora a mãe que ajuda a encontrar a menina, Najmeh decide pedir auxílio a alguém em quem não deveria confiar e logo se vê encurralada.
A metáfora do título do filme para o autoritarismo do governo do Irã, que vai semeando a intriga, a destruição e a violência entre seus cidadãos, que visam ferir em especial às mulheres que lutam pelo direito a liberdade, não necessariamente de andar sem hijab mas sim de poderem ser donas das próprias vidas. Iman, num dos muitos jantares - e almoços e cafés da manhã, as mesas são sempre repletas de comidas suculentas - discute com Rezvan e acaba perdendo a paciência quando a questiona se ela não acha que ele entende o que está acontecendo trabalhando há 20 anos no regime, no que ela retruca que não, porque ele está dentro do regime e quer manter tudo como está.
Enquanto o conflito fica centrado entre os dois e Najmeh resolve tomar medidas drásticas para impedir sua família de ruir, a trama é deslocada para uma casa na zona rural que pertence a família de Iman. Sana, aparentemente alheia a tudo, apoiando a irmã mas saindo do meio do fogo cruzado, protagoniza uma das melhores viradas dentre os filmes de drama dessa temporada. O historiador Eric Hobsbawn dizia, analisando as grandes guerras que assolaram a Europa principalmente durante a Baixa Idade Média, que "em nome de Deus, a humanidade cometeu as piores atrocidades contra os seus". Rasoulof trama, na decupagem, nos planos entre os espaços de convívio e os quartos da casa da família e da casa abandonada no campo, local onde transcorre o terceiro ato e clímax, uma conclusão que beira ao horror psicológico e que deixa a plateia atônita, ao desvelar a verdadeira natureza primitiva do pai, o senso de sobrevivências das mulheres daquela família e uma poderosa imagem final, que, numa análise semiótica, põe abaixo a teocracia e estabelece uma dinâmica marxista na redefinição das dinâmicas da sociedade iraniana.
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