Universal
2023
Direção: Wes Anderson
A vida é um palco. E Wes Anderson sabe bem disso desde que em 1994, fez o curta Bottle Rocket (em português, foi traduzido para Pura Adrenalina), um filme do gênero ação, subgênero crime ou 'heist' (assalto) onde dois irmãos sonhadores e um adolescente bolam um plano mirabolante e pra lá de maluco, que obviamente dá errado. Nesse universo de homens disfuncionais o roteiro de Anderson e Owen Wilson começa a definir o estilo narrativo que será marcante no cinema norte-americano nesses últimos 30 anos. Como diretor, Wes Anderson constrói seu discurso fílmico a partir de histórias de adultos, jovens adultos e adolescentes que sonham com a felicidade, a arte, o amor, o dinheiro, a fama e a concretização dos desejos mais pueris. Na desordem dos sentimentos de seus personagens, Anderson constrói os filmes com um formalismo estético muito particular. Os planos são simétricos, a profundidade de campo age sobre a triangulação dos elementos dispostos em cena, dando tridimensionalidade e camadas que se completam nos enquadramentos rigorosos - ou seja, o cineasta texano realiza uma interferência estilística nos procedimentos cinematográficos, em especial na montagem.
E invés do efeito de afastamento, esses e outros filmes de Anderson, como Os Excêntricos Tenenbaums, O Fantástico Sr. Raposo, Moonrise Kingdom, A Ilha dos Cachorros ou Rushmore suscitam uma 'emoção estética' nos espectadores. Seja pelas características supracitadas ou ainda pelo uso que o cineasta faz de paleta de cores em tons pasteis na cinematografia e o gosto por um certo escapismo na construção das narrativas. Na palavras do teórico inglês Clive Bell (no ensaio Art, de 1914) relaciona a especificidade do cinema como arte com a experiência direta e insubstituível que cada sujeito espectador tem com uma obra. “O ponto de partida de todo sistema de estética deve ser a experiência pessoal de uma peculiar emoção. Chamaremos os objetos que provocam essa emoção de obras de arte."
Mas existem aqueles que, independente do fato da forma significante de um filme levar a ocorrência da tal emoção estética, acham o cinema de Wes Anderson enfadonho e não conseguem ter uma experiência subjetiva positiva com seus filmes. À esses, talvez Asteroid City não seja a melhor escolha a se fazer na hora de escolher qual filme assistir. Ainda mais ambicioso no mergulho metalinguistico que proporciona, aqui o interesse temático é no teatro, assim como A Crônica Francesa era sobre o jornalismo, inclusive rendendo que a estruturação do mesmo fosse feita como uma publicação, sub dividida em suas seções e reportagens. Na produção, apresentada na Mostra Competitiva do Festival de Cannes de 2023, a história é encenada tendo como significante a artificialidade simétrica e espacial (ou poderia acrescer, extra-terrestre), que mescla os efeitos vfx com efeitos práticos delicados, como os que são utilizados para criar o passarinho andarilho e o visitante cósmico.
A história por detrás da história que o filme encena é a seguinte: o dramaturgo Conrad Earp (Edward Norton, recebendo mais um cachê simbólico de 4 mil dólares numa colaboração com Anderson) está elaborando a peça teatral Asteroid City e o processo de criação dessa obra é o produto de um programa televisivo que tem como apresentador o personagem de Bryan Cranston. Este narra, nos anos 50, a vida de Earp e a construção de Asteroid City, uma cidade fictícia no meio do deserto do Texas, onde o exército norte-americano, representado na figura do General Gibson (Jeffrey Wright) e do soldado interpretado por Tony Revolori, realiza projetos ultra-secretos cósmicos e atômicos. Vários pais, mães, filhos e filhas estão na cidade para participar do Junior Stargaze, uma convenção de inventores.
A partir da chegada e do encontro entre o fotográfo de guerra recém-viúvo Augie Steenbeck (Jason Schwartzman, de volta a um filme de Anderson depois de um longo período) e a atriz divorciada Midge Campbell (Scarlett Johansson, em sua segunda colaboração com o cineasta), a trama de Asteroid City ganha em drama e romance, também tendo seus momentos de comédia especialmente a cargo do atrapalhado Clifford (Aristou Meehan), um dos inventores júnior ou dos alunos da professorinha June (Maya Hawke). Cruzando de forma não convencional a temporalidade das tramas, Wes Anderson vai aumentando a tensão dramática e deixando os dialogos taxativamente mais inexpressivos para o dramaturgo e o elenco da peça, enquanto que os personagens de Asteroid City vão despindo suas máscaras teatrais pouco a pouco. Um visitante de outro planeta deixa exército, visitantes e moradores da cidade em polvorosa. Mas são as questões envolvendo luto e perda que deixam uma marca de autenticidade em Asteroid City: a dificuldade de Augie, suas filhas, seu sogro e o filho Woodrow (Jake Ryan) se despedirem da pessoa amada; a dor de Schubert Green (Adrien Brody) ao se separar da esposa Polly (Hong Chau).
Ainda colabora lindamente para a orquestração dos elementos em Asteroid City ser impecável a trilha sonora de Alexandre Desplat (que ganhou um dos seus Oscar com O Grande Hotel Budapeste) e as músicas cantadas por Seu Jorge e Jarvis Cocker (da banda Pulp), compostas pelos amigos de longa data Cocker e Wes Anderson, como a impagável "Dear Alien (Who Art in Heaven)". Em papeis menores, Seu Jorge, Tilda Swinton, Willem Dafoe e Jeff Goldblum também aparecem, acrescendo mais um filme de Wes Anderson no currículo. E entre os atores e atrizes badalados que estreiam num filme andersoniano, estão Margot Robbie, Steve Carell e Tom Hanks.
A estilização andersoniana não tem nada de estéril em Asteroid City, como alguns podem acusar. É um filme que exige mais atenção do público, que não está interessado em provocar emoção estética esvaziada de sentido; que inclusive flerta com o terceiro campo narrativo ao proporcionar deslizamentos entre as tramas vividas e interpretadas, fricções entre as camadas ficcionais da história sobre a dramaturgia criada por Earp, a peça montada durante a corrida espacial, sobre personagens à deriva numa cidade farsesca no meio do deserto, que serve para testes de bombas atômicas e como sede da convenção Junior Stargazer, promovida pelo exército e pela Agência Espacial norte-americana.
Asteroid City se faz e refaz a partir da percepção do sujeito espectador sobre a própria capacidade do cineasta se utilizar do artefato cinematográfico para criar gotejamentos na ficção: em Augie Steenbeck o personagem e o ator, Jones, coexiste a sensação de desalento. Ele questiona Schubert Green sobre o que se trata a peça já que não consegue compreender do que se trata nem deixar de ter um sentimento de perda a cada noite de apresentação. Green fala que ele deve continuar fazendo o que está fazendo, mesmo que não veja sentido. E no epílogo de Asteroid City, quando Earp imagina a cena onde todo o elenco está dormindo, todos os atores de Anderson se deitam e começam a dormir no chão, quando Jason/Augie/Jones se levanta, abre os olhos e solta a frase: "você precisa estar acordado para cair no sono."Todos repetem a frase, tal um coro grego e o filme termina. E a emoção está ali, na sala de cinema, desperta.
Porque Wes Anderson tem um domínio tão amplo de sua artesania mas que, quando periga estar se auto referenciando e sendo indulgente com a própria criação - como talvez tenha sido no filme anterior, irregular - ele reafirma sua autoria e a capacidade de provocar emoção estética, conexão genuína com os espectadores a partir de uma obra que talvez não seja de fácil fruição mas que recompensa cada intenção artística com sua execução inventiva e amorosa.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️❤️
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