Warner
2023
Direção: Greta Gerwig
Oi Barbie! Finalmente a produção live action da boneca da Mattel após meses de muito marketing em cima das imagens promocionais, dos teasers e trailers, estreou. E não é que a a aposta da estrela e produtora executiva Margot Robbie, que convidou Greta Gerwig para roteirizar e dirigir o filme, se afirmou certeira? Afinal a jovem e também loira concebeu uma sátira que zoa a companhia estadunidense que é a maior fabricante de brinquedos do mundo mas o faz de forma fofa (e pouco disruptiva).
Claro que Greta e seu companheiro na vida e no desenvolvimento do roteiro de Barbie, o também cineasta e marido Noah Baumbach, tiveram todo o aval e liberdade criativa para desenvolver a história das Barbies, Kens e da Barbielândia; da Mattel, de seus funcionários e do mundo real, além de tecerem as críticas que achassem pertinentes.
A cineasta, inteligente e intuitiva como é e já teve a oportunidade de demonstrar na construção imagética de Ladybird e Adoráveis Mulheres ou mesmo como roteirista e protagonista de Frances Ha, executa em Barbie a artificialidade como um artifício de composição narrativa, ao dotar o faz-de-conta da brincadeira de bonecas das características do gênero fantástico e o maravilhoso. Usando a definição de Tzvetan Todorov, o fantástico é a 'válvula de escape' das obsessões e da dureza da realidade que cumpre uma função social e - até psicológica - e a Barbielândia está constituída dos signos do gênero fantasia que usa a poesia e a alegoria como maravilhamento. A Barbie estereotípica (Margot Robbie) acorda na sua casa dos sonhos cor-de-rosa perfeita, com o hálito perfeito, toma seu café da manhã perfeito - sem que uma gota de leite seja derramada em seus lábios em direção a sua garganta - e tem a torrada perfeita, está com a roupa perfeita, não desce as escadas mas sim flutua em direção ao seu carro conversível e passa o dia com as outras Barbies perfeitas no mundo perfeitos onde os Kens apenas existem.
Eis que a Barbie longilínea, como indica o comentário mordaz da narradora (Helen Mirren) acorda certo dia de sonhos intranquilos pensando na morte. E com bafo. E o café tem sabor amargo. E a torrada está queimada. E vai calçar o sapato e o pé, sempre curvado, de repente fica chato. E ela despenca em direção ao carro. E fica tentando disfarçar, enquanto as outras Barbies continuam perfeitas e vivendo suas vidas, sendo aplaudidas e acompanhadas pelos Kens, como a Barbie presidente da Barbielândia (a talentosona Issa Rae), a Barbie cientista (Emma Mackey), outra Barbie só que essa ganhadora do Nobel (Hari Nef) - desculpa Oppenheimer! - ou a Barbie advogada (Sharon Rooney). Não, esta Barbie comum, porém perfeita, está "quebrada"e "defeituosa", talvez para sempre - como a Barbie destroyed (Kate McKinnon). Ela se sente emotiva, tem pensamentos de morte e até celulite (!) Talvez a única solução seja ir até o Mundo Real e se conectar à sua criança, como manda a Barbie detonada e riscada, porém experiente. E o Ken loiro e servil (Ryan Gosling), vai junto, levando seus patins, cruzando com a sua amada Barbie cenários de ilusionismo a la Méliès - que esse ano no cinema já foi incorporado como homenagem na composição de Beau está com Medo por Ari Aster -, que fazem a transição e ligação entre os mundos: a estrada rosa, depois o mar, o campo, a plantação de flores até chegar numa praia acinzentada.
O Mundo Real, no caso Los Angeles é o contraponto à perfeição feminista/utópica da Barbielândia, que Greta 'pinta' como uma inversão sutil na visão ingênua, infantil e deficitária de Ken de Gosling. Afinal, ele entende que o Patriarcado é o mundo onde os homens comandam de suas 'mojo dojo casa house', tem dinheiro, casacos de pele, cavalos, carros gigantes e cérebros diminutos. A Barbie estereotípica vivida por Margot se desilude ao constatar que a Mattel, a sua nave-mãe, não tem uma mulher sequer na direção da empresa. Mas como lembra não ironicamente o presidente atual, vivido pelo Hors concours Will Ferrel, já houveram uma ou duas mulheres em algum momento, décadas atrás. Porque é isso mesmo: a boneca que mudou a percepção das crianças, que fez as meninas deixarem de brincar de casinha e ninarem suas bonecas-bebês e passarem a imaginarem e serem 'o que quiserem' (o slogan mais famoso de Barbie) é, na crítica da cineasta estadunidense, fruto da ambição criativa e mercadológica dos homens que comandam o mundo capitalista. E de forma agridoce, ela imagina os caixotes na repartição-escritório da Mattel como uma forma de homenagear a dimensão humana e arquitetônica das criações de Jacques Tati (diretor de Mon Oncle e Play Time) *veja nessa matéria esses e outros filmes que a cineasta cita que foram referenciados em Barbie, num trabalho esplêndido da designer de produção Sarah Greenwood (de A Bela e a Fera).
Gloria (America Ferrera) a pobre e cansada representante do proletariado, secretária na Mattel, mãe de uma típica representante da GenZ passivo-agressiva (Ariana Greenblatt), mulher cansada, é quem se conecta realmente com a heroína Barbie estereotípica pois está em crise existencial e desenha a boneca. Elas resolvem se unir e as três fazem a jornada reversa, ou seja, voltam para a Barbielândia para que a onda barbiecore - que já assola o mundo concreto aqui fora - atinja Gloria enquanto Ken loiro, mas quem diria, instaura a ditadura do patriarcado mojo dojo casa house. E pausa para comentar, como a narradora, que por mais divertido que o Ken cujo trabalho se resume a 'praia' seja na busca por si mesmo, o filme não é sobre ele e Ryan Gosling e Greta sabem bem disso. E logicamente que no fim do dia, um roteiro bem misândrico dela e de Baumbach, dirão os detratores, salva o dia, fazendo as Barbies recuperarem o empoderamento e enganarem os Kens, reconquistarem seus lugares de direito e a ordem ser reestabelecida no universo. Não sem antes a Barbie da Margot passar por uma mudança total, uma guinada de 90 graus ali no seu ponto de mutação e ter o livre arbítrio ofertado pelo espirito de Ruth Handler, a sua criadora, fundadora da Mattel.
Barbie de Greta e Margot funciona tão bem que chega a provocar um certo incômodo. Sim, porque não vai mudar o mundo, nem Hollywood, nem tornar a indústria mais equânime, nem fazer o female gaze ser tão significativo quanto o cinema clássico. Ah mas se fizer refletir já vale. E pelo avanço que traz em termos de representatividade de gênero ou na forma que mãe e filha se conectam e enxergam uma a outra, emociona. É o suficiente? Importa mas talvez impacte pouco. Não dá para usar um filme, uma cineasta, um produto da indústria como exceção da regra que é excludente com as mulheres e outros grupos bem mais minorizados.
Mas é aquilo: diferente de muitas de suas heroinas professadas do cinema, como Agnès Varda ou Claire Denis, que nunca ganharam Oscars nem fizeram milhões nas bilheterias, Greta Celeste Gerwig parece predestinada a ir além de ser tão somente a "Meryl Streep do mumblecore", como algum crítico do The Observer a rotulou certa vez. Resta esperar o resultado dos próximos dias, quando o tsunami rosa vai inundar os cinemas.
Avaliação: ❤️❤️❤️❤️❣️
*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios. #BarbieHeimer #Barbie #Oppenheimer #marketing
Ainda não assisti, mas confesso que estou curiosa e já gosto do filme só pela mega campanha de divulgação 💖 Muito bom o texto com considerações importantes! 👏