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Foto do escritorLorenna montenegro

[Salas de Cinema] estreia - O Assassino da Lua das Flores

Atualizado: 11 de mar.

2023

Apple/Paramount

Direção: Martin Scorsese


Uma epopéia contada em prosa por um cineasta octagenário que sabe, como poucos, manejar a linguagem do cinema a partir da sua coerência artística (ou mesmo que guarda a capacidade de utilizar o aparato do filme para fazer uma declaração - sim, poética, ainda que política - sobre a perversão humana).


Martin Scorsese, afastando os maus presságios sobre a escassez de genialidade no cinema hollywoodiano vai mexendo em alguns tropos do gênero de faroeste ou western que provocam uma reimaginação ou uma subversão sobre o que a 'história oficial' dos livros narra, junto com o veterano roteirista Eric Roth - quem escreveu Munique, de Spielberg - a partir do livro de David Grann, capitula de maneira superlativa um fato histórico envolvendo petróleo, massacre indígena e a criação do FBI estadunidense.



E como poucas vezes em sua filmografia, Scorsese está contando uma história com suspense de maneira fidedigna, trágica, linear e elíptica (próximo a o que faz em O Rei da Comédia). Ele próprio é o narrador da radionovela que se passa na década de 20 do século passado sobre o enriquecimento dos indígenas da etnia Osage que, expulsos de suas terras, habitaram um território em Oklahoma onde começou a jorrar o ouro negro das entranhas do solo. Os Osage se tornaram riquíssimos e muitas pessoas brancas passaram a trabalhar para eles ou se aproximar deles em busca de alguma vantagem financeira. Juntando ganância e racismo, não demorou para que a terra do condado ficasse empapada com o sangue indígena.


Verticalizando os personagens e dando vozes e caras conhecidas como a de Leo DiCaprio e Robert De Niro a eles, o cineasta enche de qualidades e defeitos humanos seu conto sobre "Reinado do Terror" que abateu tantas vidas Osage. Ernest Burkhart (DiCaprio) é que nos joga na história do condado e narra os acontecimentos até o fatídico ato final. Um homem simplório e limitado, voltou da Primeira Guerra Mundial louco para fazer fortuna, sob a orientação da raposa velha William "Bill"Hale (De Niro), seu tio e criador de gado que tem uma ótima relação com os Osage. É dele a ideia, após saber do interesse do sobrinho por Mollie (Lily Gladstone) uma das ricas filhas de Lizzie Q, que Ernest peça a mão da moça em casamento. O matuto vai aprender sobre a cultura dos Osage para ter algum atrativo para Mollie, ouvindo relatos sobre a cosmogonia deles, com o fogo sendo o pai primordial, a lua a mãe e o céu o avô; entendendo que eles chamam de lua das flores os campos floridos tingidos pelo sol cor de carmim.


Como as flores enluadas, delicada é a saúde dos Osage: Bill Halle explica que muitos não passam dos 50 anos. Por isso, de forma ardilosa, homens brancos desposam as mulheres indígenas. As irmãs de Mollie começam a perecer, das formas mais estranhas e perturbadoras, além da mãe dela. O Assassino da Lua das Flores não é um elemento oculto do público - pelo contrário, Scorsese deixa claro e evidente desde o início quem é o mandante e quem são os executantes das mortes. Por remorso ou por amor à esposa, Ernest começa a ser torturado pela angústia quando Mollie é a única que resta viva, sendo ele, o marido, o único herdeiro das concessões de terras dela e das irmãs e da mãe, se ela vier a falecer. As atuações de DiCaprio como o estúpido e De Niro como o ardiloso são elegantes mas Gladstone é quem domina o filme de ponta a ponta com a sua concepção de uma heroína livre, astuta, apaixonada e corajosa. É de sua personagem, Mollie, a iniciativa de ir até Washington denunciar os crimes cometidos contra o seu povo, que foi expulso do Missouri para ser dizimado pela ganância.


De forma epistolar, o filme segue uma organização que capitula entre o aumento no número das mortes dos Osage e o estreitamento do laço que une Ernest e Mollie. Scorsese usa da gramática e da sintaxe do cinema para construir um mito de fundação não sobre a conquista do Oeste (tão importante para o cinema norte-americano em especial pela obra de John Ford) sobre a tragédia dos milionários indígenas que se tornaram alvo da cobiça dos brancos. Em determinado momento, quando o FBI chega ao condado para iniciar a investigação, com uma comitiva liderada pelo ranger Tom White (Jesse Plemons), Hale chega a insinuar que os crimes podem ser de autoria dos negros que sofreram atentados pelas mãos da Ku Klux Klan. Mollie até cogita uma aliança dos Osage com a Klan mas desiste. Os seus parentes continuam caindo um após o outro, inclusive o ex-noivo Henry, que tentou se matar várias vezes mas foi impedido por Hale (com quem teria uma dívida). Num maneirismo angustiante, entre idas e vindas e disse me disse nas casas de Hale e de Ernest e Mollie Burkhart, Scorsese e sua equipe, incluindo a mestra Thelma Schoonmaker e o fotógrafo Rodrigo Prieto, tensionam as situações até beirar o insuportável, com Ernest resolvendo parar de envenenar a mulher.


Poderia ser uma minissérie? Poderia, certamente seria uma forma de conservar as várias viradas na história e construir o contexto com mais tranquilidade e qualidade. Mas deveria o Assassino da Lua das Flores ser uma narrativa serializada? Uma minissérie? Na minha leitura, deveria porém se o Scorsese quer amealhar mais indicações ao Oscar (e talvez vitórias) quem sou eu para ir contra? Eu considero que por mais que ele não precise de prêmios para provar sua relevância artística, ele tem alguma carta branca por tudo que faz pela cinefilia mundial.


Talvez as mais de três horas dessa realização cinematográfica superlativa sejam um capricho de um cineasta tão experiente e idolatrado como o pai de Francesca Scorsese - afinal, poucas mulheres se atrevem a realizar filmes de mais de duas horas de duração; e não adianta falar de Jeanne Dielman pois o que Akerman exercita é um cinema que subverte a narrativa clássica, que exige outro olhar sobre a temporalidade e estrutura narrativa. Talvez, para contar uma história de primeiro campo, clássica e de fruição simples, poderia se utilizar de menos tempo. Mas Assassino da Lua das Flores é robusto em sua tessitura da natureza humana, como um romance dostoievskiano, logo Scorsese está absolvido - mesmo que a sequência no tribunal seja demasiadamente detalhada - pois ele tem a capacidade cada vez mais rara no cinema hollywoodiano contemporâneo, de entregar uma obra densa, emocionante e de execução impecável.


Com um elenco inspirado, Di Caprio e De Niro no auge das artesanias como intérpretes dramáticos, um pouco sublimados pela força descomunal da natureza que é Lily Gladstone. A atuação da atriz mestiça indígena blackfeet, não binária, tem uma nobreza e uma sutileza impressionantes. Ela preenche cada frame com sua presença sublime - e é em torno dela que o círculo de flores Osage reaviva a chama da justiça. Scorsese, na alvorada de sua carreira, ainda vem reafirmar o papel do cinema como uma arma quente de felicidade e satisfação para a nova e velha cinefilia que ama os filmes de verdade.



Avaliação: ❤️❤️❤️❤️


*o coração cheio equivale a 2 e o coração pequeno equivale a 1. A maior pontuação são 5 corações cheios.






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