[Festivais e Mostras] Emilia Pérez
- Lorenna montenegro
- 5 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de fev.
Direção: Jacques Audiard
FRA

“Man to woman or woman to man?
Man to woman
From penis to vagina”
Sí, sí, sí!
Rita é uma advogada competente (vivida com garra por Zoe Saldanha) mas que nunca teve a chance de brilhar, até que recebe uma proposta de trabalho pouco convencional: providenciar da forma mais sigilosa e segura possível, a cirurgia de redesignação sexual de um chefão de cartel mexicano, Manitas. Meses depois, nasce Emilia Pérez, a personagem título, a mulher cujo nascimento ou afirmação no gênero feminino é o cerne do filme, é defendida por Karla Sofia Gascón com destemor - a atriz espanhola de 51 anos que é uma mulher trans. Nesse casting já se pode aplaudir Emilia Pérez por não repetir os equívocos frequentes de sub representação ao menos na escalação - o que não exime o filme de incorrer em outros, sendo um musical extremamente impiedoso com as mulheres cis e trans, além de desrespeitoso com os hispanos, em especial os mexicanos, fazendo troça de um tema tão doloroso e presente na realidade do país.
Tergiversando entre o kitsch e a inverossimilhança numa narrativa linear, supostamente operistica, Emilia Pérez vai desfiando números musicais arrojados mas que soam desconjuntados em seu arrojo por serem parte motora e emocional que move a trama um tanto convencional e misógina, sobre as desventuras de Rita e de Manitas/Emilia, com direito a um número musical que peca pelo extremo mal gosto ao falar de corporeidades trans e de procedimentos estéticos e cirúrgicos de uma maneira bem desconexa. Não demora muito e vem "El Mal", que deve estar entre as músicas indicadas na temporada de premiações, onde Zoe brilha e Emilia Pérez também, numa cena que se passa durante um evento filantrópico onde a ex-criminosa se apresenta para a sociedade mexicana como uma protetora das mulheres e crianças que sofrem violências.
Rita (narradora e real protagonista da película) desliza na pista de dança, enquanto mulheres e homens ao seu redor se deixam levar pelas paixões, porém ao optar por uma premissa supostamente onírica e pouca pesquisa ou delicadeza com seu objeto, além de ficar na superficie no que tange ao tema dos desaparecidos no México, Jacques Audiard comete um grave equívoco: realiza um musical mesclado com filme de ação que provoca incômodos talvez não tão simples de nominar para pessoas cis mas talvez muito reconhecíveis para pessoas trans ou não binaries. Do segundo para o terceiro ato então, Emilia Pérez é tornada telenovela (abaixo do nível até da Televisa) e dramaturgicamente Audiard constrói algo datado, conservador e preconceituoso. Santifica a filantropa, que ocupa o mesmo corpo do assassino chefe de cartel mas fazendo uma distinção absurda entre os dois. E ele faz a defesa do seu filme “híbrido” argumentando que está ciente de que o mesmo não agrada todo mundo mas que buscou acima de tudo, a inovação ao cruzar vários gêneros e estilos cinematográficos numa mesma forma.
Emilia Pérez tem sim, seus predicados, como quando o passado da protagonista corre o risco de vir à tona e ela precisa lidar com a ex, Jessi (Selena Gomez), e o tom passa a ser melodramático, também flertando com outros gêneros como o do cinema de ação, ao mesmo tempo em que a subtrama sobre os outros cartéis e a suspeita que vai recaindo sobre Emilia Pérez ter uma conotação bem negativa em relação a quais narrativas do México são transpostas para as telas do cinema. O grande fotógrafo Rodrigo Prieto (de Barbie) em entrevista recente publicada no Deadline, frisou que, para além da presença da atriz mexicana Adriana Paz, tudo no filme soa “inautêntico e realmente irritante.”
Juntando o fato do filme se passar em território mexicano, mas sendo que boa parte da produção foi construída em estúdio na França, após ‘quatro viagens’ de Audiard e da diretora de arte Emmanuelle Duplay, e de que é é majoritariamente falando em inglês, parte em francês e outra terça parte num sofrível espanhol - alô Selena e Zoe - e as canções, a segunda que se destaca sendo Mi Camino, defendida por Selena Gomez, uma coitada sem capacidade dramática ou muito mal dirigida por Audiard mas que nesse número tem um momento de popstar (que de fato é).
Os rompantes surrealistas de Emília Pérez, pensada originalmente como um libreto de ópera por Audiard na pandemia, são acentuados após o segundo ponto de virada, dando um respiro a trama rocambolesca com a destreza que o francês certamente já demonstrou na sua trajetória como cineasta (fez O Profeta, Ferrugem e Osso), ressurge neste filme. por mais que o desfecho, novamente, como é de praxe na história do cinema não-queer, não permita uma conclusão feliz para Emilia Pérez.
Com muita dança e assassinatos, o filme de Audiard, que é o indicado da França na corrida pelo Oscar de filme internacional em 2025, acaba por fascinar pela mise en scène com atuações femininas bem calibradas - com exceção de Gomez, - ainda que peque na representação, vale frisar e refrisar. Talvez o cineasta francês, imprimindo seu estilo a uma obra que parte de uma personagem presente num livro de Boris Razon, a partir do próprio roteiro que contou com três colaboradores, entre os quais a também cineasta Léa Mysius, não tenha atinado que sua abordagem do tema é meio atrapalhada.
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